por Leonardo Boff
26/05/2011
Esbelto, de figura elegante, sempre fumando seu palheiro, ele foi um desbravador. Quando os colonos italianos não tinham mais terras para cultivar na Serra Gaúcha, eles, em grupo, emigraram para o interior de Santa Catarina, para as terras de Concórdia, notória por ser a sede das mais conhecidas empresas de carnes do pais, a Sadia e a Perdigão. Não havia nada, exceto alguns caboclos, sobreviventes da guerra do Contestado e grupos de indígenas kaigan. Reinavam os pinheirais, soberbos, a perder de vista.
Os colonos italianos vieram, organizados em caravanas, trazendo seu professor, seu puxador de reza e uma imensa vontade de trabalhar e de fazer a vida a partir do nada. Ele estudara vários anos com os jesuitas de São Leopoldo e acumulara vasto saber humanístico. Sabia latim e grego e lia em linguas estrangeiras. Viera para animar a vida daquela povera gente. Era mestre-escola, figura de referência e respeitadíssimo. Dava aulas de manhã e de tarde. À noite ensinava português para colonos que só falavam em casa italiano e alemão. Ao lado disso, abriu uma escolinha com os mais inteligentes para formá-los como guarda-livros para fazer a contabilidade das bodegas e vendas da região.
Como os adultos tinham especial dificuldade em aprender, usou um método criativo. Fez-se representante de uma distribuidora de rádios. Obrigava cada família a ter um rádio em casa e assim aprender o “brasilian” ouvindo programas em português. Montava cataventos e pequenos dínamos onde havia uma cascata para que pudessem recarregar as baterias. Como mestre-escola era um Paulo Freire avant la lettre. Conseguiu montar uma biblioteca de dois mil livros. Obrigava cada familia a levar um livro para casa, lê-lo e no domingo, depois da reza do terço em latim, formava-se uma roda onde cada um contava em português o que havia lido e entendido. Nós, pequenos, ríamos, a mais não poder, pelo português ruim que falavam.
Não ensinava apenas o básico, mas tudo o que um colono devia saber: como medir terras, como devia ser o telhado do paiol, como tirar os juros, como cuidar da mata ciliar e tratar os terrenos com grande declive. Introduzia-nos nos rudimentos de filologia, ensinando-nos as palavras latinas e gregas. Nós pequenos, sentados atrás do fogão por causa do frio géiido, devíamos recitar todo o alfabeto grego, alpha, beta, gama, delta, teta…E mais tarde no colégio, nos enchíamos de orgulho ao mostrar aos outros e até aos professores donde vinham as palavras. Aos onze filhos incitava-os à muita leitura. Eu decorava frases de Hegel e de Darwin, sem entendê-las, para dar a impressão que tinha mais cultura que os outros.
Mas era um mestra-escola no sentido pleno da palavra porque não se restringia às quatro paredes. Saía com os alunos para contemplar a natureza, explicar-lhes os nomes das plantas, a importância das águas e das árvores frutíferas. Naqueles interiores distantes de tudo, funcionava como farmacêutico. Salvou dezenas de vidas usando a piniscilina sempre que chamado, não raro, tarde da noite. Estudava em livros técnicos os sintomas das doenças e como tratá-las.
Naqueles fundos ignotos de nosso pais, havia uma pessoa angustiada por problemas políticos e metafísicos. Criou até uma pequena roda de amigos que gostavam de discutir “coisas sérias” mas mais que tudo para ouvi-lo. Sem interlocutores, lia os clássicos do pensamento como Spinoza, Hegel, Darwin, Ortega y Gasset. Passava longas horas à noite colado ao rádio para escutar programas estrangeiros e se informar do andamento da segunda guerra mundial.
Era crítico à Igreja dos padres porque estes não respeitavam os vizinhos, todos protestantes alemães, condenados já ao fogo do inferno por não serem católicos. Opunha-se com dureza àqueles que discriminavam os “negriti” e os “spuzzetti”(os que cheiravam mal). A nós, filhos, obrigava-nos a sentar na escola sempre ao lado deles para aprender a respeitá-los e a conviver com os diferentes.
Sua piedade era interiorizada. Passou-nos um sentido espiritual e ético de vida: ser sempre honesto, nunca enganar e confiar irrestritamente na Providência divina. Para que seus onze filhos pudessem estudar e chegar à universidade vendia, aos pedaços, todas as terras que tinha ou herdara. No fim, vendeu até a própria casa. Sua alegria era sem limites quando vínhamos de férias pois assim podia discutir horas e horas conosco. E nos batia a todos.
Morreu jovem, com 54 anos, extenuado de tanto trabalho e de serviço em função de todos. Sabiaa que ia morrer. Sonhava conversar com Platão, discutir com Santo Agostinho e estar entre os sábios. Na mesma hora e no mesmo dia em que embarquei no navio para estudar na Europa seu coração deixou de bater. Vim saber somente um mes depois, quando cheguei em Munique. Os irmãos e as irmãs piedosamente inscreveram seu lema de vida na sua tumba:”De sua boca ouvimos, de sua vida aprendemos: quem não vive para servir não serve para viver”.
No dia 25 de maio de 2011 ele completaria cem anos. Este mestre-escola sábio e interiorano era Mansueto Boff, meu querido e saudoso pai.
http://leonardoboff.wordpress.com/
Os colonos italianos vieram, organizados em caravanas, trazendo seu professor, seu puxador de reza e uma imensa vontade de trabalhar e de fazer a vida a partir do nada. Ele estudara vários anos com os jesuitas de São Leopoldo e acumulara vasto saber humanístico. Sabia latim e grego e lia em linguas estrangeiras. Viera para animar a vida daquela povera gente. Era mestre-escola, figura de referência e respeitadíssimo. Dava aulas de manhã e de tarde. À noite ensinava português para colonos que só falavam em casa italiano e alemão. Ao lado disso, abriu uma escolinha com os mais inteligentes para formá-los como guarda-livros para fazer a contabilidade das bodegas e vendas da região.
Como os adultos tinham especial dificuldade em aprender, usou um método criativo. Fez-se representante de uma distribuidora de rádios. Obrigava cada família a ter um rádio em casa e assim aprender o “brasilian” ouvindo programas em português. Montava cataventos e pequenos dínamos onde havia uma cascata para que pudessem recarregar as baterias. Como mestre-escola era um Paulo Freire avant la lettre. Conseguiu montar uma biblioteca de dois mil livros. Obrigava cada familia a levar um livro para casa, lê-lo e no domingo, depois da reza do terço em latim, formava-se uma roda onde cada um contava em português o que havia lido e entendido. Nós, pequenos, ríamos, a mais não poder, pelo português ruim que falavam.
Não ensinava apenas o básico, mas tudo o que um colono devia saber: como medir terras, como devia ser o telhado do paiol, como tirar os juros, como cuidar da mata ciliar e tratar os terrenos com grande declive. Introduzia-nos nos rudimentos de filologia, ensinando-nos as palavras latinas e gregas. Nós pequenos, sentados atrás do fogão por causa do frio géiido, devíamos recitar todo o alfabeto grego, alpha, beta, gama, delta, teta…E mais tarde no colégio, nos enchíamos de orgulho ao mostrar aos outros e até aos professores donde vinham as palavras. Aos onze filhos incitava-os à muita leitura. Eu decorava frases de Hegel e de Darwin, sem entendê-las, para dar a impressão que tinha mais cultura que os outros.
Mas era um mestra-escola no sentido pleno da palavra porque não se restringia às quatro paredes. Saía com os alunos para contemplar a natureza, explicar-lhes os nomes das plantas, a importância das águas e das árvores frutíferas. Naqueles interiores distantes de tudo, funcionava como farmacêutico. Salvou dezenas de vidas usando a piniscilina sempre que chamado, não raro, tarde da noite. Estudava em livros técnicos os sintomas das doenças e como tratá-las.
Naqueles fundos ignotos de nosso pais, havia uma pessoa angustiada por problemas políticos e metafísicos. Criou até uma pequena roda de amigos que gostavam de discutir “coisas sérias” mas mais que tudo para ouvi-lo. Sem interlocutores, lia os clássicos do pensamento como Spinoza, Hegel, Darwin, Ortega y Gasset. Passava longas horas à noite colado ao rádio para escutar programas estrangeiros e se informar do andamento da segunda guerra mundial.
Era crítico à Igreja dos padres porque estes não respeitavam os vizinhos, todos protestantes alemães, condenados já ao fogo do inferno por não serem católicos. Opunha-se com dureza àqueles que discriminavam os “negriti” e os “spuzzetti”(os que cheiravam mal). A nós, filhos, obrigava-nos a sentar na escola sempre ao lado deles para aprender a respeitá-los e a conviver com os diferentes.
Sua piedade era interiorizada. Passou-nos um sentido espiritual e ético de vida: ser sempre honesto, nunca enganar e confiar irrestritamente na Providência divina. Para que seus onze filhos pudessem estudar e chegar à universidade vendia, aos pedaços, todas as terras que tinha ou herdara. No fim, vendeu até a própria casa. Sua alegria era sem limites quando vínhamos de férias pois assim podia discutir horas e horas conosco. E nos batia a todos.
Morreu jovem, com 54 anos, extenuado de tanto trabalho e de serviço em função de todos. Sabiaa que ia morrer. Sonhava conversar com Platão, discutir com Santo Agostinho e estar entre os sábios. Na mesma hora e no mesmo dia em que embarquei no navio para estudar na Europa seu coração deixou de bater. Vim saber somente um mes depois, quando cheguei em Munique. Os irmãos e as irmãs piedosamente inscreveram seu lema de vida na sua tumba:”De sua boca ouvimos, de sua vida aprendemos: quem não vive para servir não serve para viver”.
No dia 25 de maio de 2011 ele completaria cem anos. Este mestre-escola sábio e interiorano era Mansueto Boff, meu querido e saudoso pai.
http://leonardoboff.wordpress.com/
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