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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Relatório do Prefeito Graciliano Ramos da Prefeitura Municipal Palmeira dos Índios

 Prefeito Graciliano Ramos
Acervo
Que Graciliano era rigoroso ao extremo com seus escritos, sabemos há muito. A faceta pouco conhecida ou lembrada é a de sua retidão enquanto foi prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, Alagoas, em 1927. Ocupou o cargo por dois anos e renunciou. Não sem deixar seus preciosos relatórios de atividades da prefeitura. Como sugeriu o Arnaldo Branco, em pontual comentário, "Se existisse vestibular pra Político, obrigaria os caras a decorar o relatório que o Graciliano Ramos fez como prefeito".

Relatório da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios

Prefeito: Graciliano Ramos

Um relatório formal, de prestação de contas de um Prefeito, pode se transformar em preciosa obra literária? Sim, ainda mais se o Prefeito for Graciliano Ramos, um dos maiores literatos do Brasil.


Pois o imortal Graciliano Ramos, em 1929, quando Prefeito do Município de Palmeira dos Índios, ao comprovar o cumprimento dos haveres de sua Administração ao Governador do Estado de Alagoas, fez uma proeza digna de sua genialidade artística e habilidade com as letras. Formulou um documento público como se fosse uma crônica.

Confira alguns trechos da prosa de Graciliano.

"Pefeitura Municipal de Palmeira dos Índios

Relatório

Ao Governo do Estado de Alagoas

Exmo. Sr. Governador:

Trago a V.Ex.ª um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928.

Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim, minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o Município se achava, muito me custaram.

COMEÇOS

O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na Administração.

Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejavam administrar. Cada pedaço do Município tinha um administrador particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.

Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensava uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administrava melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.

Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restaram poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem com suas obrigações e, sobretudo, não se enganam nas contas. Devo muito a eles.

Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.

RECEITA E DESPESA

A receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o ano ter sido péssimo, a 71:649$290, que não foram sempre bem aplicados por dois motivos: porque não me gabo de empregar dinheiro com inteligência e porque fiz despesas que não faria se elas não estivessem determinadas no orçamento.

(...)

ILUMINAÇÃO

A iluminação da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha; é de quem fez o contrato com a empresa fornecedora de luz.

(...)

CEMITÉRIO

No cemitério enterrei 189$000 – pagamento ao coveiro e conservação.

ADMINISTRAÇÃO

A administração municipal absorveu 11:457$497 – vencimentos do Prefeito, de dois secretários (um efetivo, outro aposentado), de dois fiscais, de um servente; impressão de recibos, publicações, assinatura de jornais, livros, objetos necessários à secretaria, telegramas.

Relativamente à quantia orçada, os telegramas custaram pouco. De ordinário vai para eles dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspetores, que a prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao Governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha – um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua – um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela – um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1559 D. Pedro Sardinha foi comido pelos caetés.

ARRECADAÇÃO

As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatório, que aqui os contribuintes pagam ao Município se querem, quando querem e como querem. Chamei um advogado e tenho seis agentes encarregados da arrecadação, muito penosa. (...)

LIMPEZA PÚBLICA

(...)

Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas; retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram. (...)

Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças.

"(...)
TERRAPLENO DA LAGOA

O espaço que separa a cidade do bairro da Lagoa era uma coelheira imensa, um vasto acampamento de tatus, qualquer coisa deste gênero.

(...)

Durante meses mataram-me o bicho de ouvido com reclamações de toda ordem contra o abandono em que deixava a melhor estrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros – outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de réis, dizem.

Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pirâmides do Egito, contudo. O que a Prefeitura arrecada basta para que nos não resignemos às modestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros.

Até agora as despesas com os serviços da lagoa sobem a 14:418$627.

Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estive nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se distribui-se com os meus parentes, que necessitam, coitados.

DINHEITO EXISTENTE

Deduzindo-se da receita a despesa e acrescentando-se 105$865 que a administração passada me deixou, verifica-se um saldo de 11:044$947.

40$897 estão em caixa e 11:044$050 depositados no Banco Popular e Agrícola de Palmeira. O Conselho autorizou-me a fazer o depósito.

Devo dizer que não pertenço ao banco nem tenho lá interesse de nenhuma espécie.

A prefeitura ganhou: livrou-se de um tesoureiro, que apenas servia para assinar as folhas e embolsar o ordenado, pois no interior os tesoureiros não fazem outra coisa, e teve 615$050 de juros. (...)

LEIS MUNICIPAIS

Em janeiro do ano passado não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite.

Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem.

Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império (...). Encontrei no folheto algumas leis, aliás, muito bem redigidas, e muito sebo. Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui agüentar-me, taé que o Conselho, em agosto, votou o código atual.

CONCLUSÃO

Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis.

Evitei emaranhar-me em teias de aranha.

Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem os impostos.

Não me entendi com esses.

Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escrava cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem com assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras do caminhos.

Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas.

Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca.

Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome.

Não me fizeram falta.

Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebescito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade.

Palmeira dos Índios, 10 de janeiro de 1929.

Graciliano Ramos".
http://www.literal.com.br/artigos/prefeito-graciliano-ramos

Sr. Governador.
Esta exposição é talvez desnecessária. O balanço que remeto a V. Ex.a mostra bem de que modo foi gasto em 1929 o dinheiro da Prefeitura Municipal de Palmeira do Índios. E nas contas regularmente publicadas há pormenores abundantes, minudência que excitaram o espanto benévolo da imprensa.
Isto é, pois, uma reprodução de fatos que já narrei, com algarismo e prova de guarda-livros, em numerosos balancetes e nas relações que os acompanharam.
RECEITA – 96:924$985
No orçamento do ano passado houve supressão de várias taxas que existiam em 1928. A receita, entretanto, calculada em 68:850$000, atingiu 96:924$985.
E não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoa que não precisavam deles e pus termo à extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores.
Não me resolveria, é claro, a pôr em prática no segundo ano de administração a eqüidade que torna o imposto suportável. Adotei-a logo no começo. A receita em 1928 cresceu bastante. E se não chegou à soma agora alcançada, é que me foram indispensáveis alguns meses para corrigir irregularidades muito sérias, prejudiciais à arrecadação.
DESPESA – 105:465$613
Utilizei parte das sobras existentes no primeiro balanço.
ADMINISTRAÇÃO – 22:667$748
Figuram 7:034$558 despendidos com a cobrança das rendas, 3:518$000 com a fiscalização e 2:400$000 pagos a um funcionário aposentado. Tenho seis cobradores, dois fiscais e um secretário. Todos são mal remunerados.
GRATIFICAÇÕES – 1:560$000
Estão reduzidas.
CEMITÉRIO – 243$000
Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamavam.
ILUMINAÇÃO – 7:800$000
A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá.
HIGIENE – 8:454$190
O estado sanitário é bom. O posto de higiene, instalado em 1928, presta serviços consideráveis à população. Cães, porcos e outros bichos incômodos não tornaram a aparecer nas ruas. A cidade está limpa.
INSTRUÇÃO – 2:886$180
Instituíram-se escolas em três aldeias. Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada por operários, sociedade que se dedica à educação de adultos.
Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras.
Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.
UMA DÍVIDA ANTIGA – 5:210$000
Entregaram-me, quando entrei em exercício, 105$858 para saldar várias contas, entre elas uma de 5:210$000, relativa a mais de um semestre que deixaram de pagar à empresa fornecedora de luz.
VIAÇÃO E OBRAS PÚBLICAS – 56:644$495
Os gatsos com viação e obras públicas foram excessivos. Lamento, entretanto, não me haver sido possível gastar mais. Infelizmente a nossa pobreza é grande. E ainda que elevemos a receita ao dobro da importância que ela ordinariamente alcançava, e economizemos com avareza, muito nos falta realizar. Está visto que me não preocupei com todas as obras exigidas. Escolhi as mais urgentes.
Fiz reparos nas propriedades do Município, remendei as ruas e cuidei especialmente de viação.
 Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem em curvas caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível. O caminho que vai a Quebrangulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi, tem lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford e lagartixa. Sempre me pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria.
ESTRADA PALMEIRA A SANTANA
Abandonei as trilhas dos caetés e procurei saber o preço duma estrada que fosse ter a Sant’Ana do Ipanema. Os peritos responderam que ela custaria aí uns seiscentos mil-réis ou sessenta contos. Decidi optar pela despesa avultada.
Os seiscentos mil-réis ficariam perdidos entre os barrancos que enfeitam um caminho atribuído ao defunto Delmiro Gouveia e que o Estado pagou com liberalidade: os sessenta contos, caso eu os pudesse arrancar ao povo, não serviriam talvez ao contribuinte, que, apertado pelos cobradores, diz sempre não ter encomendado obras públicas, mas a alguém haveriam de servir. Conheci os trabalhos em janeiro. Estão prontos vinte e cinco quilômetros. Gastei 26:871$930.
TERRAPLENO DA LAGOA
Este absurdo, este sonho de louco, na opinião de três ou quatro sujeitos que sabem tudo, foi concluído há meses.
Aquilo, que era uma furna lôbrega, tem agora, terminado o aterro, um declive suave. Fiz uma galeria para o escoamento das águas. O pântano que ali havia, cheio de lixo, excelente para a cultura de mosquitos, desapareceu. Deitei sobre as muralhas duas balaustradas de cimento armado. Não há perigo de se despenhar um automóvel lá de cima.
O plano que os técnicos indígenas consideravam impraticável era muito mais modesto.
Os gastos em 1929 montaram a 24:391$925.
SALDO – 2:504$319
Adicionando-se à receita o saldo existente no balanço passado e subtraindo-se a despesa, temos 2:504$319.
2:365$969 estão em caixa e 138$350 depositados no Banco Popular e Agrícola de Palmeira.
PRODUÇÃO
Dos administradores que me precederam uns dedicaram-se a obras urbanas; outros, inimigos de inovações, não se dedicaram a nada.
Nenhum, creio eu, chegou a trabalhar nos subúrbios.
Encontrei em decadência regiões outrora prósperas; terras aráveis entregues a animais, que nelas viviam quase em estado selvagem. A população minguada, ou emigrava para o Sul do País ou se fixava nos municípios vizinhos, nos povoados que nasciam perto das fronteiras e que eram para nós umas sanguessugas. Vegetavam em lastimável abandono alguns agregados humanos.
E o palmeirense afirmava, convicto, que isto era a princesa do sertão. Uma princesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavada.
Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha; suprimi, nas questões rurais, a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte; estimulei as relações entre o produtor e o consumidor.
Estabeleci feiras em cinco aldeias: 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de Fora.
Canafístula era um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com gente. Nunca vi tanto porco.
Desapareceram. E a povoação está quase limpa. Tem mercado semanal, estrada de rodagem e uma escola.
MIUDEZAS
Não pretendo levar ao público a idéia de que os meus empreendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas. Mas afinal existem. E, comparados a outros ainda menores, demonstram que aqui pelo interior podem tentar-se coisas um pouco diferentes dessas invisíveis sem grande esforço de imaginação ou microscópio.
Quando iniciei a rodovia de Sant’Ana, a opinião de alguns munícipes era de que ela não prestava porque estava boa demais. Como se eles não a merecessem. E argumentavam. Se aquilo não era péssimo, com certeza sairia caro, não poderia ser executado pelo Município.
Agora mudaram de conversa. Os impostos cresceram, dizem. Ou as obras públicas de Palmeira dos Índios são pagas pelo Estado. Chegarei a convencer-me de que não fui eu que as realizei.
BONS COMPANHEIROS
Já estou convencido. Não fui eu, primeiramente porque o dinheiro despendido era do povo, em segundo lugar porque tornaram fácil a minha tarefa uns pobres homens que se esfalfam para não perder salários miseráveis.
Quase tudo foi feito por eles. Eu apenas teria tido o mérito de escolhê-los e vigiá-los, se nisto houvesse mérito.
MULTAS
Arrecadei mais de dois contos de réis de multas. Isto prova que as coisas não vão bem.
E não se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades passam despercebidas. As infrações que produziram soma considerável para um orçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando.
Esforcei-me por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.
Sei bem que antigamente os agentes municipais eram zarolhos. Quando um infeliz se cansava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma resolução heróica; encomendava-se a Deus e ia à capital. E os Prefeitos  achavam razoável que os contraventores fossem punidos pelo Sr. Secretário do Interior, por intermédio da polícia.
REFORMADORES
O esforço empregado para dar ao Município o necessário é vivamente combatido por alguns pregoeiros de métodos administrativos originais. Em conformidade com eles, deveríamos proceder sempre com a máxima condescendência, não onerar os camaradas, se rigorosos apenas com os pobre-diabos sem proteção, diminuir a receita, reduzir a despesa aos vencimentos dos funcionários, que ninguém vive sem comer, deixar esse luxo de obras públicas à Federação, ao Estado ou, em falta destes, à Divina Providência.
Belo programa. Não se faria nada, para não descontentar os amigos: os amigos que pagam, os que administram, o que hão de administrar. Seria ótimo. E existiria por preço baixo uma Prefeitura bode expiatório, magnífico assunto para commérage de lugar pequeno.
POBRE POVO SOFREDOR
É uma interessante classe de contribuintes, módica em número, mas bastante forte. Pertencem a ela negociantes, proprietários, industriais, agiotas que esfolam o próximo com juros de judeu.
Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão.
 Como ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros.
PROJETOS
Tenho vários, de execução duvidosa. Poderei concorrer para o aumento da produção e, conseqüentemente, da arrecadação. Mas umas semanas de chuva ou de estiagem arruínam as searas, desmantelam tudo – e os projetos morrem.
Iniciarei, se houver recursos, trabalhos urbanos.
Há pouco tempo, com a iluminação que temos, pérfida, dissimulavam-se nas ruas sérias ameaças à integridade das canelas imprudentes que por ali transitassem em noites de escuro.
Já uma rapariga aqui morreu afogada no enxurro. Uma senhora e uma criança, arrastadas por um dos rios que se formavam no centro da cidade, andaram rolando de cachoeira em cachoeira e danificaram na viagem braços, pernas, costelas e outros órgãos apreciáveis.
Julgo que, por enquanto, semelhantes perigos estão conjurados, mas dois meses de preguiça durante o inverno bastarão para que eles se renovem.
Empedrarei, se puder, algumas ruas.
Tenho também a idéia de iniciar a construção de açudes na zona sertaneja. Mas para que semear promessas que não sei se darão frutos? Relatarei com pormenores os planos a que me referia quando eles estiverem executados, se isto acontecer.
Ficarei, porém, satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É uma pretensão moderada, realizável. Se não realizar, o prejuízo não será grande.
O Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos.
Paz e prosperidade.
Palmeira dos Índios, 11 de janeiro de 1930.
GRACILIANO RAMOS
 http://www.revistadehistoria.com.br/secao/conteudo-complementar/relatorio-da-prefeitura-municipal-de-palmeira-dos-indios-1930

A política do mestre Graciliano Ramos

Ele deu mostras de sua verve literária ao relatar com transparência e estilo aspectos de sua rigorosa atuação como gestor público
Não bastasse ser um dos maiores escritores da literatura brasileira de todos os tempos, Graciliano Ramos (1892-1953) foi também um político exemplar. De 1928 até abril de 1930, o autor de Vidas Secas exerceu o cargo de prefeito na cidade de Palmeira dos Índios e aplicou na administração pública o mesmo rigor que destinava ao trato com a palavra. Ao final do primeiro e do segundo anos de seu mandato, o romancista elaborou dois relatórios de prestação de contas que entraram para a história da política nacional. Com uma linguagem clara e por vezes irônica e sarcástica, ele produziu uma verdadeira lição de transparência diante da máquina pública. Nesta edição, o jornal "A Gazeta" traz depoimentos de pesquisadores, acadêmicos, artistas e juristas sobre esse exemplo político pertinente, que deve estimular a reflexão em todos nós, (e)leitores, às vésperas de mais uma eleição. 
Um prefeito que toda cidade merece
433 votos. O número foi suficiente para eleger Graciliano Ramos prefeito do município de Palmeira dos Índios, no pleito ocorrido no final de 1927. Durante os dois anos seguintes, mais precisamente até o dia 10 de abril de 1930, o futuro escritor percorreria uma singular trajetória política no comando administrativo da cidade então considerada a “princesa do sertão”.
Embora já arquivasse uma considerável produção literária em periódicos locais – geralmente assinada com pseudônimos –, Graciliano ainda não tinha iniciado a carreira como contista e romancista que o consagraria como um dos maiores escritores de língua portuguesa e legaria obras antológicas como Vidas Secas, Angústia e São Bernardo.
Nessa época, aos 35 anos, o então ‘jovem Graça’ voltara de uma temporada no Rio de Janeiro abalado por uma tragédia familiar – dois irmãos, uma irmã e um sobrinho tinham morrido vítimas de uma epidemia de peste bubônica. Uma junção de fatores – como um crime político ocorrido na cidade, um pedido direto do governador Álvaro Correia Paes e a provocação de caciques políticos de manda-chuvas locais – o levou a disputar o pleito eleitoral pelo Partido Democrata.
Eleito sem campanha e sem comício
Antes de conhecer detalhes e pormenores dos documentos elaborados pelo escritor, é preciso compreender o contexto em que sua administração transcorreu. Provocado a disputar as eleições, Graciliano Ramos foi eleito sem campanha ou sem ter feito um único comício. Anos depois, em entrevista à Revista do Globo, em 1948, ele reconheceu o ambiente suspeito de sua eleição: “Fui eleito naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando”.
Pois é. Isso no final de 1927, em pleno decorrer da República Velha, numa terra pobre, situada entre o agreste e o sertão de Alagoas. Um lugar em que a lei era frouxa e subserviente aos mandos dos coronéis. Foi nesse cenário que o filho de um comerciante local impôs o seu estilo rigoroso, metódico e imparcial. Ele chegou inclusive a elaborar um novo Código de Postura Municipal, que atualizou o último, datado ainda da época do império.
Relatórios equilibram ironia e sobriedade
Nos relatórios, a abordagem formal foi substituída por notas cheias de ironia, redigidas num tom mais coloquial do que propriamente literário. De todo modo, os textos explicitavam uma intimidade nata com a língua – em forma e conteúdo –, numa ousada e honesta descrição de suas realizações. Vejamos alguns destaques.
Logo no início do primeiro relatório, o prefeito ressalta que sua primeira atitude foi “estabelecer alguma ordem na administração”, deixando bem claro quem ‘daria as cartas’ a partir de então.
“Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante de Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. (...) Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas”.
Autor da tese de doutorado Sarmento é considerado uma das maiores autoridades locais na obra do Velho Graça. Sobre os Relatórios, ele escreveu à Gazeta:
“Quem tenha a oportunidade de ler com atenção e espírito crítico os dois relatórios do prefeito de Palmeira dos Índios Graciliano Ramos (1928-1930) para o governador do estado de Alagoas Álvaro Paes vai deparar com uma demonstração de sinceridade atordoante. No relatório de 1929, o prefeito Graciliano Ramos diz ao governador que não foi possível realizar muitas obras, sobretudo porque ‘os nossos recursos são exíguos’. Hoje isso não seria problema, porque entre o dizer e o fazer se estende uma estrada capaz de nos levar à Terra do Nunca e quase ninguém fica incomodado com a fantasia malévola. Uma razão atual é que o esforço do sincero — e ele nem precisa mais sê-lo — tem o aparato, antes desconhecido, da mídia televisiva e de toda a parafernália da publicidade, que mentem mais do que ele.
O QUE ELES DISSERAM SOBRE OS RELATÓRIOS
MAURÍCIO MELO - Jornalista da TV Senado
No próximo mês de outubro, a TV Senado exibirá um documentário dirigido por Maurício Melo em comemoração aos 70 anos da publicação de Vidas Secas, completados em 2009. Para não cair no clichê e evitar o tom meramente elogioso, o jornalista procurou responder em paralelo à seguinte questão: “Enquanto homem público Graciliano correspondeu para minimizar as misérias humanas que ele denunciou em seus romances?”, pergunta Maurício Melo, que dá a resposta em seguida: “Ele foi um cara inovador para a época. Ele tentou, dentro de seus limites, acabar com aquela situação vivida por seus personagens”. Maurício lista os relatórios entre os mais importantes documentos políticos do Brasil. “Uma análise política do relatório mostra que ele se equipara a um documento chamado Projeto para o Brasil, elaborado por José Bonifácio (1763-1838), onde ele procurou modernizar o País do ponto de vista administrativo”, explica.
IVAN BARROS - Jornalista, advogado e escritor
Ex-repórter da extinta revista Manchete, promotor de Justiça aposentado e autor de diversos livros sobre assuntos tão díspares quanto a eutanásia e o jurista alagoano Pontes de Miranda, Ivan Barros traz a visão de um filho da terra que foi administrada pelo Velho Graça. Além de ter escrito o curioso Graciliano Era Assim – lançado em 1974, pela Sergasa –, o palmeirense guarda a sete chaves duas raridades: os originais do primeiro relatório e o código de conduta municipal elaborados por Graciliano Ramos. “Sua administração construiu quatro escolas na zona rural”, observa o escritor, que prepara um novo livro: Graciliano, o Prefeito que Virou Best-Seller. “Até hoje, de lá para cá, ele foi o único prefeito que deixou dinheiro nos cofres ao sair da prefeitura. Dizem que os relatórios inspiraram a Lei de Responsabilidade Fiscal”, conta. Sobre os Relatórios, Ivan Barros é direto: “Eu vejo os Relatórios como uma lição para esses políticos fichas-sujas, ficha limpa e os que estão denunciados por improbidade ou irregularidades”, sentencia.
ANA FLORINDA DANTAS - Juíza membro do Pleno do Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas (TRE-AL)
Além de juíza da 22ª Vara Cível da Capital e professora da Faculdade de Direito do Centro Universitário Cesmac, Ana Florinda Dantas é juíza membro do Tribunal Regional Eleitoral. Portanto, um nome diretamente ligado ao assunto mais comentado do momento: as eleições. Na sua opinião, Graciliano Ramos foi “um exemplo de probidade administrativa e respeito aos seus administrados, pois levou a democracia representativa ao mais alto patamar, quando se sentia efetivamente um representante do seu eleitor, a quem prestava contas e dava satisfações dos seus atos de administração. Mais que isso, tinha um comportamento pessoal compatível com a austeridade do governante que sabia ser, mesmo involuntariamente, um modelo para os administrados”. Sobre a prestação de contas do escritor, ela observa: “Fico sinceramente comovida quando vejo a simplicidade e a sinceridade de seus Relatórios, pois tenho a nítida impressão de que usava de linguagem clara para que fosse bem entendido pela população que iria lê-lo, uma vez que como homem culto e erudito, seria até de se esperar que se utilizasse de uma linguagem mais rebuscada”. E compara os Relatórios com os modelos adotados atualmente.
ARNALDO BRANCO - Cartunista
Antes do término da entrevista, Arnaldo Branco, um dos mais celebrados cartunistas brasileiros da nova geração, lembrou de um dado curioso: seu pai, o jornalista Aloísio Branco, tinha sido ‘foca’ (repórter iniciante) de Graciliano Ramos no jornal Correio da Manhã, lá nos anos 50. Em meio à correria do lançamento de mais um livro, o quadrinista encontrou tempo para nos conceder uma entrevista mesmo envolvido em tantas atividades – ele é cartunista da Folha de S.Paulo, quadrinista do jornal O Globo e do portal G1, roteirista do programa Casseta & Planeta, Urgente! e editor do site Mau Humor – www.oesquema.com.br/mauhumor. Arnaldo é outro fã da obra do escritor nascido em Quebrangulo. “Eu sou mesmo. Eu gosto muito de Memórias do Cárcere. Para mim, é um dos grandes livros brasileiros por tudo aquilo que ele simboliza para o Brasil. Gosto muito de São Bernardo. Não há como falar em literatura brasileira sem citar Vidas Secas. Ele é um excelente escritor, um cara denso, a literatura dele era dura. Eu o acho parecido com João Cabral de Melo Neto na secura do texto, mas aquilo é superlegível, você lê com prazer, sentindo tudo o que ele descreve”, avalia.
BELMIRA MAGALHÃES - Professora do curso de Letras da Ufal
Especialista em Graciliano Ramos, a professora Belmira Magalhães é mais uma pesquisadora egressa do curso de Letras da Ufal. Ela estuda formas narrativas na obra de Graciliano Ramos com enfoque na crítica literária. Atualmente, Belmira concentra suas pesquisas nos romances Vidas Secas, Angústia e São Bernardo. Em sua abordagem, ela destaca a denúncia de Graciliano sobre as relações de poder e o perfil de literato esboçado pelo escritor em seus relatórios. “A primeira coisa que gostaria de salientar refere-se à atualidade dos Relatórios de Graciliano Ramos, que tão bem refletem a relação entre as subjetividades dominantes e dominadas, e a necessidade dos donos do poder de criar indivíduos que se submetam sem contestação aos desmandos dos patrões e do poder público. Nos relatórios já está presente o grande literato, tanto do ponto de vista formal, com uma escrita sucinta, correta e objetiva, como do ponto de vista da realidade que se propõe discutir, sempre mostrando os horrores que são cometidos pelo poder.
MARCOS FALCHERO FALLEIROS - Professor de Literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Autor da dissertação de mestrado A Retórica do Seco – Graciliano Ramos (USP, 1989), Marcos Falchero Falleiros é especialista na obra do escritor. Em seu depoimento sobre os relatórios políticos do autor de São Bernardo, ele enviou o texto com o título Graciliano Ramos contra os Donos do Brasil. Nele, escreveu:
“Graciliano Ramos publicou dois relatórios anuais dando conta de pouco mais de dois anos de sua administração como prefeito de Palmeira dos Índios, em 1928 e 1929. Às vésperas da Revolução de 30, o deboche honesto de seu estilo dava eco bem mais verdadeiro aos ideais de justiça, ordem social e anticorrupção, que eram alardeados pelo que ele qualificou depois, com enjoo, de ‘demagogia tenentista’. Os relatórios, rompendo com toda a impostação da linguagem bacharelesca, tiveram tal sucesso que Marques Rebelo, em série de artigos publicados em 1953, na Gazeta de Alagoas, contava que quase teve que disputá-los a dentada, quando os encontrou no Rio, em folhetos com edição própria e capa cor de telha, sendo lidos sovinamente por Rômulo de Castro – secretário da editora de Augusto Schmidt e interlocutor das tratativas de
publicação de Caetés.

Fonte: A Gazeta
 http://www.informacaopublica.org.br/node/1231

GRACILIANO RAMOS

Ficcionista, 1892 – 1953
Graciliano Ramos (desenho de Cândido Portinari)

A SECURA EXATA, O PROSADOR ANTI-ORNAMENTAL


QUANDO TUDO ACONTECEU...
1892: Nasce em Quebrangulo, Alagoas, Brasil - 1910/14: Cuida da casa comercial do pai, em Palmeira dos Índios. - 1914: Vai para o Rio de Janeiro, trabalha no Correio da Manhã. - 1915: Regressa a Palmeira dos Índios; casa com Maria Augusta. 1925: Inicia Caetés. - 1927: Eleito prefeito de Palmeira dos Índios. - 1928: Casa com Heloísa. - 1929/30: Relatórios do prefeito Graciliano ao Governador do Estado. - 1930: Renuncia à prefeitura; diretor da imprensa oficial do Estado. - 1933: Edição de Caetés; é nomeado diretor da Instrução Pública de Alagoas. - 1934: Edição de S. Bernardo. – 1936: É demitido e preso sob a acusação de ser comunista - 1937: Sai da prisão; inicia a publicação de contos em La Prensa, de Buenos Aires. - 1938: Edição de Vidas Secas. - 1939: É nomeado inspetor Federal do Ensino Secundário. - 1944: Edição de Histórias de Alexandre. - 1945: Edição de Infância, memórias, pela Livraria José Olympio Editora; filia-se ao Partido Comunista do Brasil. - 1947: Insônia, editado pela José Olympio. - 1951: Eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores (ABDE). - 1952: Viaja à URSS (Viagem, edição póstuma em 1954, José Olympio); discorda do chamado "realismo socialista" de Zdanov. - 1953: Morte, câncer no pulmão; edição póstuma de Memórias do Cárcere (José Olympio).

AUTO RETRATO DO ARTISTA QUANDO ADULTO (AOS 56 ANOS)






- Desabafos, Agonias & Absolvições –
          "Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne.
            Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos"
            (Carta à irmã Marilia Ramos, aprendiz de ficcionista, em 23.11.49).
Nasceu em 1892, em Quebrangulo [paroxítono], Alagoas. Casado duas vezes, tem sete filhos. Altura, 1,75. Sapato n.º 41. Colarinho n.º 39. Prefere não andar. Não gosta de vizinhos. Detesta rádio, telefone e campainhas. Tem horror às pessoas que falam alto. Usa óculos. Meio calvo. Não tem preferência por nenhuma comida. Indiferente à música. Não gosta de frutas nem de doces. Sua leitura predileta: a Bíblia. Escreve Caetés com 34 anos de idade. Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados. Gosta de beber aguardente. É ateu. Indiferente à Academia. Odeia a burguesia. Adora crianças. Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel António de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. Gosta de palavrões escritos e falados. Deseja a morte do capitalismo. Escreve seus livros pela manhã. Fuma cigarros Selma (três maços por dia). É inspetor de ensino, trabalha no Correio da Manhã. Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo. Só tem cinco ternos de roupa, estragados. Refaz seus romances várias vezes. Esteve preso duas vezes. É-lhe indiferente estar preso ou solto. Escreve à mão. Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio. Tem poucas dívidas. Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas. Espera morrer com 57 anos (Obs.: morreu aos 61). Capitão Lobo comandava o quartel em que esteve preso no Recife, 1936; Cubano foi um ladrão que ele conheceu na cadeia. Ver Memórias do Cárcere, título idêntico ao de Camillo Castello Branco.

RETRATO SEM POSE TIRADO DE LONGE



Graciliano cria fama de grosseiro. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.






































Graciliano na sua mesa de trabalho em 1950













 Esse Graciliano Ramos, ou Velho Graça, ou Major Graça, ou Mestre Graça, como o chamavam afetuosamente, é um fingidor. Por sentimentalismo ou vergonha, finge-se mais áspero do que é, mais espinhoso que um mandacaru. Sertanejo magro, de ombros curvos, um cigarro ardendo entre os dedos ou na boca, de roupas simples mas asseadas, mãos limpas (em todos os sentidos). Cria fama de grosseiro por causa de diálogos como estes:
— Bom dia, mestre Graça.
— Você acha, meu filho?
Ou então:
— Mestre Graça, se a situação continuar desse jeito, vamos comer merda — diz-lhe o romancista José Lins do Rego, nos tempos da ditadura de Getúlio Vargas.
— Se sobrar p’ra nós, Zé Lins. Se sobrar...
Seu romance de estréia, Caetés, ele o considera "um desastre" ou "uma encrenca". Angústia, o terceiro, é "este desastre que preparo e que terá, se aparecer um editor maluco, cinqüenta leitores do Amazonas ao Prata, talvez nem tanto". Vidas Secas tem uma "história mesquinha —um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos." Sua correspondência traz frases em italiano e francês. Traduz do francês e recita Le Cid, de Corneille, no original. Admira Eça de Queiroz, lê muito Machado de Assis. Conhece gramática portuguesa a fundo. Mas diz ter "uma cultura de almanaque". De vez em quando exalta-se: "Vai sair uma obra-prima, em língua de sertanejo, cheia de termos descabelados" (acerca de S. Bernardo, segundo romance). E reitera: "Foi palavreado difícil de personagens sabidos demais que arrasou a antiga literatura brasileira. Literatura brasileira uma ova, que o Brasil nunca teve literatura. Vai ter de hoje em diante" (idem).
Assim vê a atividade de escritor: "Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes como nós. Mesmo os que são doentes, os degenerados que escrevem história fiada, nem sempre nos inspiram simpatia: é necessário que a doença que nos ataca atinja outros com igual intensidade para que vejamos neles um irmão e lhes mostremos as nossas chagas, isto é, os nossos manuscritos, as nossas misérias, que publicamos cauterizadas, alteradas em conformidade com a técnica" (carta à mulher Heloísa, abril de 1935).
Alfabetizou-se em casa dos pais, na fazenda, "agüentando pancada".
— Um aparte, por obséquio.
— Com que finalidade? Por quem o senhor se toma?
— Por um curioso, apenas curioso. No volume Infância o senhor se atém às memórias relevantes. Parece pensar, como Sherwood Anderson, que não existem histórias seriadas, seqüenciais. Se existem, é que houve intervenção do autor, o que pressupõe artifício. A vida é feita de raros instantes felizes e muitos transes amargos ou desgraçados.
Em Infância predomina o ácido e, em certos trechos, o travo azedo. O memorialista não está ali para emperequetar-se. A análise, tanto da família quanto das ambiências, de si próprio e dos outros, é de uma rudeza total. O senhor tinha o seu orgulho, claro, mas não nutria vaidades bestas. Imprecava principalmente contra si próprio. Era, como disse Oswald de Andrade, um mandacaru escrevendo.
Em um compêndio de achegas biobibliográficas, Moacir Medeiros de Sant’Ana refere-se aos "vários e contundentes julgamentos dos seus pais, feitos por Graciliano Ramos nas suas memórias da infância". O pai "não economizava pancadas e repreensões" e na mãe o que espantava mais "era a falta de sorriso". Por isso, Olívio Montenegro considera o livro "obra diabólica". E no seu Jornal de Crítica, Álvaro Lins afirma, constrangido: "Quando se decidiu a escrever um livro de memórias, a sensibilidade reagiu em toda a sua exacerbação: e exprimiu-se pela exteriorização daquilo que nela se gravara mais profundamente (...) Um mundo intolerável de castigos, privações e vergonhas". Sim, a memória não grava com igual nitidez as felicidades e infelicidades; o lado podre tem primazia.
A secura exata, as frases que dizem muito com grande economia de meios. É o prosador anti-ornamental numa terra em que os prosadores continuam bacharelescos, relutam em aposentar os ornatos.
Do mesmo modo que, em romances anteriores, o senhor desce ao limo das personagens, em Infância vai à borra do coração. Predominância do monólogo (até mesmo por se tratar de depoimento), palavras pesadas e mortais, que ecoam como badaladas, arrancadas que foram da carne viva dos significados, e que traduzem verdades literais.
Na formação do menino Graciliano entram muitos instrumentos de suplício: o áspero meio sertanejo no final do século passado e início do século 20; o pai comerciante e fazendeiro, tipo rude da média burguesia urbana e rural, com um perfil de patriarca que cobra obediência pronta; a mãe de poucas letras e minguado afeto. Repressão política do coronelismo tipo cabresto, enxada e voto. Repressão sexual. Repressão, sobretudo, à inteligência. A sensibilidade do menino ferida a todo instante, no relacionamento penoso com os pais, na escola, nas ruas, sofrendo o impacto da miséria ambiental. O menino cresce solitário e desconfiado, agarra-se a "migalhas de sons, farrapos de imagens"— dolorosos, todos eles. E apesar da violência do meio, plasma por dentro a sensibilidade, procura um espaço, uma expressão, enquanto por fora tece a couraça protetora.
Mesmo os que, indiferentes à beleza da arte literária, abrem Infância em busca de um documento social, decerto encontram achegas sobre a arte de martirizar crianças. Antes, arte apurada no regime patriarcal; hoje, arte nacional, de ponta a ponta, fio a pavio.

"MENOS RUIM DO QUE EU JULGAVA"


De Buíque, Graciliano retira personagens para "Angústia". Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.





 Quebrangulo, Alagoas, Brasil. Nasce Graciliano Ramos de Oliveira a 27 de outubro de 1892. "Meu pai, Sebastião Ramos, negociante miúdo, casado com a filha dum criador de gado, ouviu os conselhos de minha avó, comprou uma fazenda em Buíque, Pernambuco, e levou para lá os filhos, a mulher e os cacarecos. Ali a seca matou o gado — e seu Sebastião abriu uma loja na vila, talvez em 95 ou 96. Da fazenda conservo a lembrança de Amaro Vaqueiro e de José Baía. Na vila conheci André Laerte, cabo José da Luz, Rosenda lavadeira, padre José Ignácio, Filipe Benício, Teotoninho Sabiá e família, seu Batista, dona Marocas, minha professora, mulher de seu Antônio Justino, personagens que utilizei anos depois".
É verdade: utiliza-os, principalmente, em Angústia, nas lembranças e delírios de Luís da Silva — mas alguns vêm à tona em Infância. Por causa dos seus temas e personagens recorrentes, e do teor autobiográfico, considera-se sem imaginação, embora houvesse dito, em cartas, que o enredo não importava, que o fundamental eram as descidas ao subsolo da personalidade.
— O senhor me permite um aparte?
— Novamente? Lá vem besteira...
— É tão somente para concordar com o senhor, quando diz que estamos no que escrevemos. Opinião perfeita para o seu caso. Agora, diga-me: o que aconteceu aos seus sonetos de juventude?
— As traças comeram.
— O senhor tem muito do Luís da Silva de Angústia. E o Luís guardava um álbum do qual arrancava páginas, sem se dar ao trabalho de copiar, para vender sonetos a literatos canastrões, depois de jurar que estavam inéditos...
1910-1914 — Cuida da casa comercial do pai em Palmeira dos Índios, "terra que, se não é boa, sempre é menos ruim do que eu julgava. Aqui não há cafés, há maus bilhares, pouca cerveja, nenhum divertimento" (carta à mãe, Maria Augusta Ferro Ramos, 1910).

"OS PRIMEIROS CINCO MIL-RÉIS"


 1911 — Em junho e julho, recupera a saúde em Maniçoba, a fazenda perto de Buíque, sertão pernambucano. "Isto aqui", diz em carta, "é bom como o diabo: acorda-se às cinco da manhã, leva-se o dia lendo, fumando, comendo e rezando; dorme-se às nove da noite. Uma vida de anjo".
Sob pseudônimo, colabora em O Malho, revista carioca. Já aos 13 anos publica sonetos, ali e no Correio de Maceió. Desgosta-o a vida de comerciante: "Não quero emprego no comércio — antes ser mordido por uma cobra (carta ao pai, 1913). Pensa em "procurar alguma coisa na imprensa".
1914 — Sai de Palmeira dos Índios no dia 16 de agosto, embarca no navio Itassucê para o Rio de Janeiro, a 27, com o amigo Joaquim Pinto da Mota Lima Filho. Chegam no dia 29. Entra para o Correio da Manhã, como revisor. "Sou foca no Correio da Manhã e não sei quando poderei chegar a alguma coisa. Das nove às duas da madrugada, trabalha-se na revisão do Correio ( carta à irmã Leonor). A 16 de novembro ganha "os primeiros cinco mil-réis em novo emprego".

TRAGÉDIA NA FAMÍLIA

Nota promissória da "Loja Sincera"
 1915 — Renuncia à pensão que a família lhe remete. "Uma vida parasitária é a pior das vergonhas", diz à irmã Leonor. Em princípios de agosto, é informado por telegrama da tragédia: numa epidemia de peste bubônica, morrem em Palmeira seus irmãos Octacília, Leonor e Clodoaldo, e o sobrinho Heleno. Graciliano volta em setembro. A 21 de outubro, desposa Maria Augusta de Barros, com quem teria quatro filhos: Márcio, Júnio, Múcio e Maria Augusta. Sucede ao pai como comerciante, na loja A Sincera, tecidos e armarinho, Rua da Intendência, 5.
1920 — Maria Augusta morre de parto, 23 de novembro.
1925 — Inicia Caetés, concluído em 1926, mas revisto várias vezes: corta e substitui palavras até 1930. "Vou mexer num capítulo a ver se mando logo para o Rio aquela encrenca", diz em carta.
1926 — Confessa em carta ao amigo Joaquim Pinto: "Eu li A Capital e O Conde d’Abranhos e ando a procurar os outros". E mais adiante: "Será possível que O Conde d’Abranhos seja do autor dos Maias?"

TRÊS FONTES PROVÁVEIS



Flaubert talvez inspire Graciliano. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.











































Graciliano Ramos, escritor alagoano (foto inserida no site http://www.ofarol.inf.br/caetes/ )















"S. Bernardo" vem a lume em 1934. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
 — O nobre romancista me concede outro aparte? Talvez não seja breve mas será esclarecedor. Sua formação intelectual há de ter sido basicamente luso-francesa, como, de resto, a geração machadiana e pós-machadiana. A influência das letras anglo-americanas entre nós data da II Guerra Mundial.
Eu me pergunto se o senhor não teria degustado Flaubert, com quem guarda, aliás, a identidade de um estilo que assenta na prosa concisa. Madame Bovary, de 1857, se não teve na vida intelectual brasileira a voga dos romances de Eça, sobretudo Os Maias, cunhou, no entanto, o verbete bovarismo, com que se designa, a propósito de Emma Bovary e seu triste destino, o temperamento inclinado ao devaneio.
Não há em seus artigos para jornais, compilados nos volumes póstumos Linhas Tortas e Viventes das Alagoas, qualquer referência ao "solitário de Croisset". O senhor se estende em louvores a Eça, cuja presença está mais do que identificada em Caetés. "Que enorme quantidade de Raposos, de Zé Fernandes, de Dâmasos, de conselheiros Acácios e de Ramires não há neste mundo !", exclama em artigo de 1915. Algumas personagens ecianas, como o senhor mesmo observou, "palestram conosco e nos transmitem idéias mais ou menos iguais às nossas". Balzac é considerado "sisudo analista", o senhor cita François Coppée e Paul de Kock, mostra que leu Daudet, Taine não lhe foi estranho, e também menciona Romain Rolland e Victor Hugo. De Albert Camus, traduziu La Peste, e na folha-de-rosto assinou modestamente "G. R."
O senhor fica nisso, sem lembrar Flaubert e outros clássicos que deve ter lido. Em língua portuguesa, depois de Eça, seus entusiasmos correm para Machado de Assis, de quem existem alguns ecos em Caetés, entre os quais este:
"Bradei: 'Luísa me ama ! Estrelas do céu, Luísa me ama !' Imaginei que as estrelas do céu ficavam cientes e isto me deu satisfação" .
E este ainda:
"Diversos eu, d. Josefa? Sou apenas um, infelizmente. Se fosse ao menos quatro, ficava muito bem entre as senhoras".
Sem provas concretas, creio que o senhor leu Gustave Flaubert, e certamente numa daquelas edições francesas cartonadas que circulavam na época. Da leitura ficou-lhe uma impregnação que o ajudaria, mais tarde, a compor a abertura brutal de Caetés. Lembra-se do segundo parágrafo?
"Luísa quis mostrar-me uma passagem no livro que lia. Curvou-se. Não me contive e dei-lhe dois beijos no cachaço. Ela ergueu-se, indignada:
"— O senhor é doido ? Que ousadia é essa ? Eu...
"Não pôde continuar. Dos olhos, que deitavam faíscas, saltaram lágrimas".
Vejamos agora Madame Bovary, terceira parte, capítulo 1:
"Et, comme ils se trouvaient debout tous les deux, lui placé derrière et Emma baissant la tête, il se pencha vers son cou et la baisa longuement à la nuque.
"— Mais vous êtes fou ! Ah ! vous êtes fou ! disait-elle avec de petits rires sonores, tandis que les baisers se multipliaient".
Bem, Mestre Graça, leituras sentidas deixam cicatrizes na memória — e a conseqüência são essas aparentes imitações, que, na verdade, aproximam temperamentos, sensibilidades, experiências comuns. Na boa literatura a lanterna de Diógenes passa de mão, como tocha olímpica.
Mas há diferenças flagrantes entre Emma e Luísa. A personagem de Caetés, provinciana e tímida, enquadrada pelo acanhado meio pequeno-burguês, é impelida ao adultério pelo tédio e pelo idoso marido enfermo. A flaubertiana Emma, ao contrário, é absorvente, insatisfeita, insaciável. Emite uma voluptuosidade mística de permeio com uma carnalidade ostensiva. E nela Flaubert, um libertino de freios moralistas, romântico mas cínico, expõe-se: "Madame Bovary c’est moi".
Referindo-se a Caetés, o senhor disse naquele tom áspero que escondia a ternura : "Nestas páginas horríveis, onde nada se aproveita..." E, concluindo, considerou-o "uma narrativa idiota, conversa de papagaios".
Exagero, mestre Graça. Mais de 60 anos depois verifica-se que, longe de ser o canhestro exercício de um ficcionista que ainda não definiu linguagem própria, aquele romance é parte coesa da obra, da qual não constitui fruto temporão. A obra é um monólogo intenso, do qual consta, indissociável, aquele primeiro livro. Salvo ecos de Eça, de há muito reconhecidos pela crítica, e também de Machado, Caetés é a nascente que, já nos seus capítulos derradeiros, engrossa e ruma para o estuário dos romances mais densos, mais nucleares. Caetés demonstra que o universo ficcional do senhor, limitado a aspectos de sua vida e experiência, alimenta-se de temas e personagens recorrentes que, já na estréia, compunham o tom confessional do romancista. Sem o João Valério, narrador de Caetés, decerto não existiria o Paulo Honório, narrador de S. Bernardo. E, com mais certeza, não haveria o Luís da Silva, narrador de Angústia. E sem a personagem feminina que, em Caetés, pratica adultério, não teríamos a matriz de Madalena, que comete suicídio no romance seguinte. O calculista Evaristo Barroca do romance de estréia é modelo do espaventoso Julião Tavares, de Angústia. Alguns caboclos anônimos e soturnos de Caetés esboçam o retrato futuro do vaqueiro Fabiano de Vidas Secas.
Um instante, não me interrompa. A prosa característica do senhor — a visão de mundo a partir do monólogo, a personagem em conflito e sempre a se analisar e a imprecar contra o meio e as circunstâncias, querendo impor, mas sem saber como, o seu ponto de vista — evolui, já em Caetés, da crônica de costumes de uma cidade do interior alagoano, Palmeira dos Índios, para o romance psicológico — com o qual, aliás, robustece a segunda etapa do romance de ‘30.
Vejamos outras influências, afiemos os ouvidos para outras prováveis ressonâncias. O senhor leu Eça. O prosador português, mais que Flaubert, mais que qualquer outro, teve profunda repercussão no Brasil nos dois primeiros decênios do século 20, foi lido à larga, endeusado. Caetés não escaparia, pois, ao contágio eciano. É um repositório de cenas da vida na Província, com tipos curiosos, ironias, sarcasmos, diálogos ágeis, notações humorísticas e, como tempero, o adultério. A receita queiroziana.
Os ecos irrompem sobretudo na técnica das conversas paralelas, em jantares, partidas de bilhar e jogos de xadrez, com toques humorísticos, quando sobressai a imbecilidade de certas personagens. Ninguém melhor que Eça caricaturou indivíduos pomposos e medíocres, ninguém o superou na criação de tipos no mínimo curiosos. Pois bem: há em Caetés um padre Atanásio que não consegue concatenar duas idéias: mistura tudo, esquece logo o que acabou de dizer e deixa as conclusões em suspenso. O discurso incoerente provoca situações risíveis. Um exemplo:
"— É claro, não há dúvida. Necessitamos luz, muita luz.
— Com miolo de pão ? — perguntou Clementina".
Outro eco, este menos forte:
"Na poltrona de padre Atanásio repimpava-se o Dr. Castro, de braços cruzados, bochechudo, vermelho, feliz e sem testa."
Esse Dr. Castro, de resto um idiota chapado, lembra, e muito, o Dâmaso Salcede, pelintra vazio mas altamente presunçoso de Os Maias.
Já a presença de Machado de Assis, mais discreta, também não dá margem a dúvidas. Dei dois exemplos. Agora, proponho mais dois:
"Vacilei alguns minutos e afinal me resolvi a pôr-lhe o enduape na cabeça e o canitar entre parênteses."
"Apoderou-se do tabelião e dissertou abundantemente".
A essas impregnações, o senhor reage com a contundência da linguagem, a economia de palavras e ações induzidas pelo minguado e seco meio sertanejo. A sua língua já é brasileira, na quase totalidade, o estilo de Caetés já é o do prosador sóbrio, consciente do peso específico das palavras, denso e intervindo o menos possível: as personagens têm liberdade, obedecem a comandos instintivos, reagem de conformidade com seu conflitos.
Mas outros ecos, os da Semana de 22, com a revolução modernista, que pregava a cartilha verde-amarelista, aquele tupy or not tupy de Oswald de Andrade, haveriam de chegar a Alagoas e provocar, quem sabe?, na escritura do senhor, um realinhamento crítico. Refugiado em 1932 na sacristia de uma igreja, em Palmeira, o senhor recorreu ao vocabulário nordestino e a expressões tiradas da linguagem oral para dar têmpera a S. Bernardo.
O senhor respondia, conscientemente ou por intuição, ao preceito da Semana de 22: temas brasileiros, linguagem desvinculada o mais possível da sintaxe portuguesa, embora Mário de Andrade houvesse ponderado que a sintaxe não pôde ser destruída, ela continua estruturalmente portuguesa. A oralidade já se faz notar na abertura de Caetés: cachaço (de mulher, e mulher amada) em vez de nuca. E nas páginas finais, o narrador se refere à sua "admiração exagerada às coisas brilhantes, ao período sonoro, às miçangas literárias, o que me induz a pendurar no que escrevo adjetivos de enfeite, que depois risco..." Não deixa de ser curioso que o narrador de S. Bernardo convocasse um amigo para escrever o romance. Mas se desentenderam logo, porque o colaborador apresentou prosa arrevesada. "Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!", reage o narrador. E decide escrever sozinho, com os seus recursos verbais, com a linguagem sertaneja.
— Tudo isso é conversa fiada, é xaropada.
— Não é. S. Bernardo veio a lume em 1934. Os capítulos 19, 30 e 36 surpreendem a personagem principal, Paulo Honório, em aguda crise existencial. Sozinho na casa-grande, sem mulher e sem amigos, e com a consciência em brasa, ele se contempla: mãos enormes, dedos enormes, um monstro, um aleijado moral. Insone, acuado, ele vê, ele toca, ele sente a superfície da sua dor. Vivemos nessas páginas um instante luminoso do ficcionismo brasileiro. Nós, que acompanhávamos o romance de ‘30, encontramos de repente na sua prosa o espaço interior da escrita, que imerge e desvenda o coração secreto, a ambiência, o traço sociológico.
S. Bernardo uniu psicologismo e documento social romântico-naturalista. Mas não se esqueça que o João Valério de Caetés já traz em si a semente do inconformismo, insegurança e descrença e daquela angústia que acaba por gerar a modernidade. "Sou um caeté", confessa Valério. Caeté também é Paulo Honório, também é Luís da Silva.
— Mentira, empulhação, impostura. Eu lá ia saber de Modernismo de 22, no sertão alagoano, roendo coirana, comendo toucinho com muito pelo...
— Um contemporâneo seu, Valdemar de Sousa Lima, recorda que o senhor era atraído para as crianças e as rosas. Calma, não enrubesça. No livrinho Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios, Valdemar o descreve como "fino balconista". Tendo herdado do pai a loja A Sincera, iniciou ali longa atividade comercial, durante 19 anos. O senhor lia jornais e almanaques, recebia livros em lombo de burro, ensinava francês a moças e dava cursos noturnos a adultos. Seria estranho que, nessa faina, o Modernismo lhe passasse despercebido por completo. O crítico Wilson Martins considerou-o "um modernista malgré lui", e atribuindo importância decisiva ao Modernismo de 22, escreveu: "Sem esperar e sem querer tornou-se um escritor modernista, já que, nos anos ‘30, tratava-se de ser modernista ou morrer..."

RELATÓRIOS DENUNCIADORES


 1927 — Eleito prefeito de Palmeira dos Índios, a 7 de outubro.
1928 — Casa-se em Maceió, segundas núpcias, com Heloísa Leite de Medeiros, a quem conhecera meses antes e fizera a corte em ardentes cartas de amor. Terão quatro filhos: Ricardo, Roberto (morto em 1930), Luísa e Clara.
1929 — Primeiro relatório do prefeito Graciliano ao Governador do Estado.
1930 — Segundo relatório. O poeta e editor Augusto Frederico Schmidt suspeita que ele tem um romance na gaveta e manifesta desejo de editá-lo. É que a linguagem dos relatórios nada tem de burocrática; criativa, heterodoxa, com o fel da ironia sarcástica, denuncia o prosador. Graciliano renuncia à prefeitura. Pouco depois é diretor da Imprensa Oficial do Estado.

PERSEGUIÇÕES POLÍTICAS E PRISÃO
"Retirantes" quadro a óleo de Portinari




 1931 — É denunciado por desafetos à Junta Estadual de Sanções, que se seguiu à Revolução de ’30: desvio de 1.020$000 da prefeitura. Processo logo arquivado por absoluta falta de provas.
1932 — Em setembro, inicia S. Bernardo. Demite-se da direção da Imprensa Oficial e vai com a família para Palmeira. Ali trabalha em S. Bernardo.
1933 — Sai do prelo Caetés, por Schmidt editor, do Rio. Nomeado diretor da Instrução Pública de Alagoas. Em novembro, conclui S. Bernardo.
1934 — Edição de S. Bernardo, pela Ariel Editora, no Rio. Dá-se a "Intentona" comunista, em março.
1935 — Inicia Angústia.
1936 — Afastado do cargo de diretor da Instrução Pública. Preso em Maceió, em março, sem culpa formada. Motivo? Seria comunista. Passa por várias prisões, em Maceió e Recife. Segue em porão de navio para o Rio de Janeiro, fica quase um ano na cadeia, incluindo a Colônia Correcional da Ilha Grande. "Estou resolvido a não me defender. Defender-me de quê? Tudo é comédia e de qualquer maneira eu seria um péssimo ator" (carta à mulher). Em agosto, sai Angústia (Livraria José Olympio Editora), que "foi bem recebido. Não pelo que vale, mas porque me tornei de algum modo conhecido, infelizmente" (idem).

PESADELO QUE NÃO ACABA
Grupo de escritores que homenageou Graciliano Ramos quando fez 50 anos.  De entre eles destacam-seMarques Rebelo, Carlos Drummond de Andrade, Cândido Portinari, Lúcia Miguel-Pereira, Manuel Bandeira e José Lins do Rego.

































"Os Retirantes" quadro a óleo de Portinari
 "Um crime, uma ação boa dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos", pensa Luís da Silva, narrador de Angústia, modesto funcionário público. Se vivesse hoje, mais de 60 anos depois, sua situação seria a mesma ou pior. De lá para cá, alguns indicadores sociais melhoraram, mas outros vícios, como a corrupção e a falência dos costumes, agravaram-se.
A classe média que o romance descreve, incerta e insegura, e sobrevivendo à custa de renúncias, estaria agora proletarizada. Luís luta para subir socialmente. Nordestino de origens rurais, vem de uma família outrora poderosa. São freqüentes, no fluxo memorialístico do narrador, suas lembranças do avô Trajano. Alcançou-o velho, caduco, a dormitar numa rede. Antes senhor de baraço e cutelo, assaltava a cadeia da vila para libertar cangaceiros; no final da vida, com umas reses magras na pastagem, embriagava-se e vomitava na sobrecasaca de um antigo escravo, mestre Domingos, que, por respeito, lhe suportava os destemperos.
A Graciliano Ramos não interessa o romance da decadência da aristocracia rural nordestina. É tarefa para seu contemporâneo José Lins do Rego, que enfocou principalmente os senhores de engenho. Contenta-se, em rápidas imagens repetidas pelo desespero do narrador, em transmitir do passado apenas o necessário com que exibir o desenraizamento de Luís da Silva, cujo pai vivia numa rede, a ler histórias românticas. O passado cruel condiciona a vida atual de Luís. Sente-se que o narrador é mais um Prometeu acorrentado. Ele próprio reconhece que, tivesse nascido em outro berço e recebido outra educação, seu destino seria melhor, ele pertenceria à classe dominante — a dos banqueiros, comerciantes, donos de jornais e diretores de repartição que o dominam de longe. Mas aquele passado rural de agricultores empobrecidos, vivendo dos antigos fastos, é uma marca escarlate, a marca da danação. A sensibilidade de Luís está aberta e sangra. Não há como conter o sangramento. As imagens patéticas ou trágicas assaltam-no nos sonhos e devaneios diários. Sua vida é um pesadelo econômico, um exílio social. Ele está a recordar constantemente o avô com uma cascavel enrolada ao pescoço e suplicando que a tirem; a avó que, sem conhecer o prazer sexual, paria numa cama de varas; o pai preguiçoso e violento que o atirou vezes seguidas ao rio, para ensiná-lo a nadar; um homem que se enforcou, de vergonha, porque tivera de esmolar um pão fresco que lhe foi negado; os pés disformes do pai morto sobre o marquesão sobrevoado por moscas. Cenas e imagens de pesadelo; de uma vida injusta, pobre, violenta, resultante da frágil economia do sertão habitado com o que o narrador chama "a minha raça vagabunda e queimada pela seca".
O narrador busca longe da vida sertaneja melhores condições de vida. Elas estariam no Sul — para onde emigram em geral os "descamisados", os de "pés no chão", os "sem-terra". Mas no Rio o retirante Luís da Silva, apesar dos pendores literários, sabendo escrever (aqui, no sentido da composição jornalística ou literária), com muitas leituras, conhece a solidão, o anonimato. O estabelecimento social rejeita-o. Ele está preso às engrenagens de uma sociedade então pré-capitalista (mal começara a fase de industrialização do Governo Vargas), hoje de economia globalizada, em que o dinheiro é valor supremo. Aos que nasceram bem aquinhoados, a estrada desdobra-se reta e chã; aos carentes, a dura tarefa de sobreviver. Esta é a sociedade brasileira dos anos ’30 subliminarmente descrita em Angústia, e que subsiste, em muitos aspectos piorada — daí a permanência temática do romance.
Romance "proletário", tal como o praticou Máximo Gorki, e romance de introspecção dostoievskiana. A exemplo dos humilhados e ofendidos de Dostoiévski, o destino de Luís da Silva é trágico — não somente por suas origens humildes, mas também porque há em volta dele, manietando-o, uma rede de circunstâncias restritivas. Em plena ditadura, com a renda e bem-estar concentrados na minoria privilegiada, resta aos despossuídos o sonho da revolução popular.
Um sonho bem vigiado pela polícia e sonho que, a essa altura, esvaziou boa parte de sua substância ideológica... Luís quer participar dele. Quer contribuir para a luta nas sombras por uma ordem igualitária. Ao mesmo tempo, tem de sobreviver: há o aluguel, os alimentos e remédios, ele é fustigado pelo impulso de verticalização social. Por isso se submete. No jornal, como revisor ou articulista, faz o que lhe mandam: "Escreva assim, seu Luís. Seu Luís obedecia. — Escreva assado, seu Luís. Seu Luís arrumava no papel as idéias e os interesses dos outros". Suas verdadeiras opiniões ficam para as conversas com Pimentel e Moisés, em casa, porque o café é perigoso, tipos suspeitos rondam os cafés. O intelectual Luís, um revoltado, escreve para o governo, elogia o governo. Em Vidas Secas, o vaqueiro Fabiano, depois de tomar facãozadas no lombo por ordem de um soldado amarelo, encontra-se com este na caatinga e, de facão em punho, recua e deixa-o passar: "Governo é governo".
A mesma atitude de subserviência ao poder. A diferença é que Fabiano, um bruto, sofre menos, enquanto o intelectualizado Luís recebe todas as agressões da desesperança e do repúdio social nos nervos tensos.
Nas primeiras páginas de Angústia o narrador declara-se "um molambo que a cidade puiu demais e sujou". Seu cotidiano triste divide-se entre a repartição, a banca de revisão, o café que freqüenta ocasionalmente e a casa velha, cheia de ratos, com uma criada meio surda, Vitória, que enterra no quintal as moedas do salário e conversa com um papagaio. Luís tem consciência da sua condição; nela, a tragédia, mais do que inspirada pelo passado familiar sertanejo, é um desdobramento. Sua visão de mundo é trágica porque está na sua formação, e as ações, ainda que limitadas pelo meio acanhado e opressivo, sinalizam a tragicidade. Romance naturalista, dir-se-á. Mas um naturalismo que, como o de Thomas Hardy, não se restringe ao jogo cego das forças do destino que Hardy, em Tess of the d’Urbervilles, atribui ao "President of the Immortals", citando Ésquilo. As personagens serão trágicas, no brasileiro, por herança e por uma necessidade inconsciente, intensa, de buscarem a tragicidade como forma até de explicação, justificação, sentido para a vida.
É o caso do narrador de Angústia. Cruel consigo mesmo, em comentários que chegam às raias do masoquismo, Luís da Silva atormenta-se. A princípio, diz: "Não sou um rato, não quero ser um rato". Mas não tardará a se considerar "um níquel social". Recebeu "muito coice da vida". É "uma criatura insignificante, um percevejo social..." Um rato rói-lhe as entranhas. O amor para ele é "uma coisa dolorosa, complicada e incompleta". Admite que rolou "faminto, esmolambado e cheio de sonhos" por esse mundo.
Robert H. Heilman observa, a propósito da Tess de Hardy: "Nossos egos estão ligados às nossas idéias; querem que os fatos se ajustem às idéias, do contrário nos ofendemos e tendemos, se tivermos poder para tanto, a nos tornar punitivos". Pois bem: a punição, em primeira etapa, vai para Luís da Silva, e este se humilha mais para sofrer mais, para purgar. Depois, com o aparecimento de Marina, os fados oferecem-lhe breve trégua. No seu romance de fundo de quintal com Marina — quintais cheios de lixo e plantações mesquinhas, onde um homem carrancudo e uma mulher triste trabalham com pipas e dornas —, Luís tem a impressão de descobrir o amor, quando está atraído pelo erotismo e Marina anseia apenas em sair da pobreza absoluta. De qualquer modo, é a felicidade: ele está relativamente tranqüilo, tem uns três contos de réis de economias, deseja casar-se. A idéia de casamento precipita a tragédia pessoal banhada pela tragédia social. Moça estouvada, de cabeça vazia, pensando em ostentações, Marina consome num ápice as suadas economias de Luís no enxoval e, em pleno "noivado", aceita a corte de um estranho, Julião Tavares, um parasita de discurso empolado e arrogância pavonácea. Tavares é o resumo de tudo quanto oprime Luís: dinheiro fácil, berço de ouro, prestígio social, mediocridade intelectual, poder de corromper e safar-se ileso. Gordo, cínico e esperto, Julião Tavares invade a casa de Luís, seduz Marina e distancia-se quando ela ostenta sinais de gravidez. A família submete-se: nenhuma queixa, apenas resmungos. Os humildes aprendem a vergar a espinha sob o peso dos opressores. O sedutor lança-se à conquista fácil de outras meninas pobres.
Mas o narrador de Angústia, espezinhado, traumatizado, esbulhado pela vida — este reage. É que o sofrimento atinge o ponto da exasperação, ele tem as comportas cheias de água estagnada. A fúria que antes o devastava se dirige ao opressor. Ele não tem, como Moisés, coragem de pichar muros, de distribuir "folhetos incendiários". Mas o Presidente dos Imortais lhe põe nas mãos o instrumento da vingança — uma corda. A essa altura o monólogo de Luís da Silva — o fluxo "objetivo" do inconsciente, ou seja, a linguagem da ação — se transforma em delírio. Imagens se atropelam: o cano de água é uma corda, a gravata enrola-se como corda, a cobra em volta do pescoço de Trajano é corda viva. O narrador vê-se compelido a matar Julião Tavares após a verificação de que Marina, grávida, procura parteira clandestina. No capítulo final as referências ao passado se aglomeram. É um entrechoque de lembranças. As imagens trágicas do meio rural e da vida urbana de Luís se juntam para entoar o coro da tragédia. Início e fim do romance se fecham quais pontas de um leque. Angústia é um pesadelo contínuo. O narrador pergunta: "Haverá dentro de 20 anos criaturas assim que, tendo corrido mundo, se resignam a viver num fundo de quintal, olhando canteiros murchos, respirando podridões, desejando um pedaço de carne viciada?" Sim, e em condições ainda piores.

ESCREVER PARA SOBREVIVER

 1937 — Sai da prisão em janeiro. Vai morar com a família "numa pensãozinha modesta" da Rua Correia Dutra. Inicia a publicação de contos em La Prensa, de Buenos Aires (capítulos de Infância e Vidas Secas), por via do tradutor Benjamin Garay. Escreve para sobreviver. "Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil como você vê: procuro adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejaríamos. A diferença é que eu quero que eles apareçam antes do sono..."
1938 — Edição do romance Vidas Secas, constituído por um conjunto de contos que inclui a história da cadela Baleia.

"BALEIA" E OUTROS CONTOS
Graciliano Ramos (desenho de Arpad Szenes)
 Graciliano Ramos pratica o conto forçado pela necessidade de melhorar o orçamento. O argentino Garay é seu primeiro tradutor. Alguns contos, entre eles "Baleia", de Vidas Secas, saem em La Prensa. Mas em verdade ele jamais pretendeu ser contista e refere-se a seus contos de forma irônica. Insônia será, a rigor, seu único livro a trazer o rótulo de contos — embora Infância contenha, no mínimo, quatro histórias curtas e Vidas Secas seja romance escamoteável, à guisa de The Unvanquished e Go Down, Moses, de William Faulkner: podem ser desmontados em forma de contos ligados por débil fio condutor e no entanto autônomos entre si.
Se alargarmos o conceito de conto literário, veremos que o escritor, além de Insônia, deixou outra coletânea na qual o gênero impõe a sua poética, espaço peculiar e particular: Alexandre e Outros Heróis, narrativas folclóricas. No mesmo ano de Histórias Incompletas, matriz de Insônia, João Guimarães Rosa estreia-se com Sagarana. Um ano após, Murilo Rubião publica O Ex-Mágico. Os contos de Vila Feliz, de Aníbal Machado, datam de 1944, da mesma forma que a estréia do alagoano Breno Accioly, com João Urso. O volume de contos Eis a Noite!, de João Alphonsus, é um pouco anterior: 1942. Identifica-se, portanto, nos anos ‘40, uma confluência de emoções para o conto, que adquire autonomia ou autodeterminação (excluído o fenômeno Machado de Assis, anterior).
A ficção curta brasileira deixa-se impregnar por um teor poemático que facilita a introspecção. Tchekhov, Katherine Mansfield, Proust, Kafka, Saroyan exerciam à época influência marcante. Data também da década de ’40 a prosa alegórica de Clarice Lispector, e convém lembrar o penumbrismo de Cornélio Penna, ligeiramente anterior ( Fronteira, 1935). Ora, Graciliano sente-se à vontade nessa escrita que dilui o realismo meridiano do romance "regionalista" . É um escritor impressionista voltado para as paisagens íntimas. Ainda assim, o facto social, o facto econômico e o facto político estão nas suas ficções curtas sem delas constituir aspecto preponderante. Veja-se, em Insônia, um conto de atmosfera política, "A Prisão de J. Carmo Gomes", além de contos sobre a vida burocrática, a vida conjugal, a vida literária. Sem esquecer o que nele é forte: o relato de teor autobiográfico, como "O Relógio do Hospital", inspirado, ao que parece, no seu período de hospitalização em Maceió, quando se submeteu a cirurgia.
Nele, as duas correntes do ficcionismo brasileiro — a introspecção ora exacerbada, ora imposta por fatores externos condicionantes — e a moldura do meio geográfico e do momento histórico, que na ficção naturalista assumem atitudes de diretiva única, convivem em harmonia, conjugam-se. O julgamento das suas histórias curtas dependerá sempre do conceito que se tenha de conto, sem apelos vanguardistas. Se rigoroso aquele conceito, muitas histórias do ficcionista alagoano escapariam aos moldes clássicos do gênero. O memorialismo que tanto se espraia pela ficção de Graciliano leva-o a escrever páginas que não passam de impressões ligeiras, crônicas, monólogos e casos, com repetições.

"O MAIOR DE TODOS NÓS"

 1939 — Nomeado Inspetor Federal do Ensino Secundário, por influência de Carlos Drummond de Andrade, então chefe de gabinete do Ministro da Educação, Gustavo Capanema. Fica no cargo até o fim da vida.
1941 — Edição de A Terra dos Meninos Pelados, história infanto-juvenil.
1942 — Seus 50 anos são comemorados com um jantar de escritores no restaurante Lido, em Copacabana.
1944 — A Editora Leitura lança Histórias de Alexandre, título inicial de Alexandre e Outros Heróis.
1945 — Sai Infância, memórias, pela Livraria José Olympio Editora. Graciliano filia-se ao Partido Comunista do Brasil.
1946 — Participa do III Congresso de Escritores, em Salvador, Bahia.
1947 — Aparece Insônia (José Olympio), volume de contos derivado de Histórias Incompletas, pouco antes editadas na Coleção Tucano da Livraria do Globo.
1951 — Eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores (ABDE).
1952 — Completa 60 anos e é homenageado em sessão solene da Câmara de Vereadores. Sauda-o o poeta Jorge de Lima. O discurso de Graciliano, que está doente e não comparece, é lido por sua filha Clara Ramos. "Estamos aqui", diz José Lins do Rego, "para homenagear o maior de todos nós". Reeleito presidente da ABDE. Viagem com a mulher Heloísa à URSS, passando pela Checoslováquia, França e Portugal. Impressões recolhidas no livro Viagem, edição póstuma (1954, José Olympio). Discordando do chamado "realismo socialista" de Zdanov, considera pífia a literatura da era soviética.

GRACILIANO, DALCÍDIO E A DAMA
Graciliano e as netas Vânia e Sandra
 Nos fundos da Livraria José Olympio Editora, na Rua do Ouvidor 110, quase esquina com Avenida Rio Branco, há um marquesão no qual poucos ousam sentar-se. É o refúgio de Graciliano Ramos, que tem o hábito de acomodar-se a um canto e cruzar as pernas magras.
Num certo fim de tarde, quando ele, lá do seu canto, dá trela ao poeta estreante Jorge Medauar, sentado no outro canto, o romancista Dalcídio Jurandir vai se aproximando. É do Pará, pertence ao Pecebão (o PC ortodoxo) e tem um jeito de camelo, com ligeira corcova. Sem cerimônia, ocupa o espaço vago no centro.
— Mestre Graça, tem um mineiro badalando muito. Um tal de Guimarães Rosa. Já leu?
— Ainda não.
— Imitador de Joyce. Em vez de Saga, pôs Sagarana no título. Quer ser o alquimista da língua.
— Ah, é?
— Li umas páginas. Não é de todo mau — condescende Dalcídio.
Pausa. O romancista paraense volta à carga:
— Mestre Graça, já leu Cyro dos Anjos?
— Não. Quem é?
— Outro mineiro. Escreve parecido com Machado de Assis.
— Nesse caso — pondera Graciliano, descruzando as pernas — eu prefiro o original.
— Apareceu também um tal de Breno Accioly. É contista lá da sua terra, das Alagoas — informa Dalcídio. —Já leu?
— Como se chama o livro?
João Urso. Tem prefácio de Zé Lins.
— Não sou de prefácios, não gosto de arrodeios — confessa Graciliano. — Pego o cabra e leio sem intermediações.
— Mas já leu o João Urso?
— Só uns dois ou três contos.
— Pois eu não passei do primeiro — diz Dalcídio. — Uma prosa maluca, retórica. Coisa de doido.
Silêncio. Graciliano pigarreia e prepara-se para acender outro cigarro. Como ninguém toma a iniciativa da palavra, Dalcídio Jurandir ergue-se, dobrando os joelhos como fazem os camelos, e despede-se. Tem assuntos a tratar na ABI.
— Medauar — pede o velho Graça quando o vulto desaparece na porta —, vá atrás daquele safado e descubra se está falando mal de mim.
Mais ou menos nessa época, o velho regressa de uma viagem à URSS. Em Moscou, obrigaram-no a catar no chão do metrô a ponta de cigarro que ele havia atirado fora. O metrô moscovita era um espelho, brilhava. "Nós não o fizemos e limpamos para que os senhores do mundo capitalista venham sujá-lo com baganas", dissera-lhe, em tom acrimonioso, o guia.
A ida à URSS resulta num livro de impressões intitulado Viagem e que começa com uma demonstração de aborrecimento do velho Graça: ele não se sente bem na "encrenca voadora". É como chama o avião. Fumando seu cigarro no marquesão da José Olympio, vê uma senhora tremelicante de banhas e de jóias aproximar-se, toda sorridente, com um exemplar do livro para o indefectível autógrafo.
— Mestre Graciliano, assine aqui. O senhor voltou assumido da União Soviética?
— Assumido como, minha senhora?
— Ora, assumido. Assim como o André Gide.
É demais. O romancista estoura:
— Como, minha senhora? Veado?

SEIS MESES DE VIDA
Graciliano com a mulher em 1948 na Ilha do Governador (Rio de Janeiro), onde repousava.
 1952, setembro — Vai a Buenos Aires tratar-se com o Dr. Tayana, às expensas do Partido. O médico constata: câncer no pulmão. Abre-lhe o tórax: inútil a cirurgia. Dá-lhe seis meses de vida.
1953 — Morre no dia 20 de março, pela manhã, e é sepultado no dia seguinte, no Cemitério de São João Batista, às 10 horas, após velório na Câmara Municipal. Edição póstuma de Memórias do Cárcere (José Olympio). Outras edições póstumas, Viventes das Alagoas e Linhas Tortas, circulam na década de ’60.
1992 — A 20 de março, no mesmo dia do mês e da semana, e quase com a mesma idade do pai Graciliano, morre o escritor Ricardo Ramos, em São Paulo.
1993 — Morre Clara Ramos, filha de Graciliano.
http://www.vidaslusofonas.pt/graciliano_ramos.htm

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