No caso, a forma "fulmine" expressa fato posto no plano da suposição, do desejo, da hipótese
Nas últimas semanas, trocamos dois dedos de prosa sobre a concordância de palavras como “bastante”, “quite” e “mesmo”. Como vimos, “bastante”, ao pé da letra, significa “que basta”. “Conhecimento bastante”, por exemplo, equivale a “conhecimento que basta”. Ou será que equivale a “conhecimento que baste”? Expressões como “ideia que resolve” e “ideia que resolva”, por exemplo, são equivalentes?
Vejamos como fica isso. Talvez você conheça alguém que vive com dor de estômago. Esse pobre coitado já experimentou de tudo (menos ir a um bom médico), e nada de se livrar da dor. Um belo dia, um vizinho oferece a ele um remédio de cuja existência o “doente” nunca tinha ouvido falar. A dor passa, o vizinho se muda, não deixa telefone, e o nome do remédio... Pois bem, o “doente” vai a uma farmácia, dirige-se ao balconista e explica-lhe como é o comprimido (cor, tamanho etc.).
A conversa com o balconista pode muito bem começar pela seguinte frase: “Procuro um medicamento que fulmina a minha dor de estômago”. No caso, a forma “fulmina” (do presente do indicativo) expressa fato posto no plano da certeza. Quando entra na farmácia, esse indivíduo já sabe que aquele remédio resolve o problema.
E “um medicamento que fulmine a dor de estômago”? É só mudar um pouco a situação do doente. Basta que nenhum dos vários remédios que já tomou tenha resolvido o problema ou que não conheça nenhum medicamento eficiente. Esse cidadão pode muito bem entrar numa farmácia e pedir um remédio “que fulmine” a dor de estômago. No caso, a forma “fulmine” (do presente do subjuntivo) expressa fato posto no plano da suposição, do desejo, da hipótese etc.
Você deve ter notado que o tempo das duas formas verbais (“fulmina” e “fulmine”) é o mesmo (presente); o que as distingue é o modo: “fulmina” é do modo indicativo; “fulmine” é do modo subjuntivo. Convém repassar: o modo indicativo expressa fato posto no plano da certeza, da realidade; o subjuntivo expressa fato posto no plano da dúvida, da hipótese etc. Por isso, é perfeitamente possível, por exemplo, optar entre “Creio que ela esteja...” e “Creio que ela está”, de acordo com o que se quer salientar. Quem diz “Creio que ela está em Assis” manifesta mais convicção do que quem diz “Creio que ela esteja em Assis”.
Como se vê, temos aí mais uma das tantas situações em que a questão não deve ser posta no plano do “certo ou errado”, ou do “qual é a correta?”, como se uma forma excluísse a outra. A melhor resposta a essas perguntas sobre a escolha do modo verbal é “depende”.
A mesma resposta (“depende”) pode ser dada em relação a formas como “era” (do pretérito imperfeito do indicativo) e “fosse” (do pretérito imperfeito do subjuntivo), quando usadas em orações que complementam verbos como “crer”, “duvidar”, “suspeitar” etc. ou nomes como “desconfiança”, “suspeita” etc. Em sua Moderna Gramática Portuguesa, Evanildo Bechara dá estes dois exemplos (ambos de O Monge de Cister, de Alexandre Herculano): “...me vinham à mente suspeitas de que ela fosse um anjo transviado do céu...”; “Suspeitava-se que era a alma da velha Brites que andava ali penada”. No primeiro exemplo, a forma “fosse” realça as suspeitas; no segundo, a forma “era” manifesta que há mais certeza do que dúvida em relação à presença da alma da velha Brites.
Ainda há o que dizer a respeito do tema. Voltaremos a ele na semana que vem.
Até segunda. Um forte abraço.
Pasquale Cipro Neto
http://www.opovo.com.br/app/colunas/aopedaletra/2011/05/02/noticiaaopedaletra,2193449/um-medicamento-que-fulmina-e.shtml
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